quarta-feira, 28 de maio de 2008

Balthus - o último moderno

‘‘O olhar converteu-se em contato, ser visto com atenção é ser tocado.’’ A frase dita por Marie Pierre Colle Corcuera dá a dimensão erótica da obra de Balthasar Klossowski de Rola, o pintor francês Balthus. Marie Colle foi uma das muitas adolescentes retratadas pelo pintor, juntamente com duas irmãs que posaram para o sensual quadro As Três Irmãs, realizado há mais de 40 anos. Suas recordações falam de um homem dedicado à tarefa de recriar corpos e olhares, em um ambiente de concentração e escassas palavras. Último remanescente do que se poderia chamar a idade de ouro da pintura moderna, Balthus é também um exemplo de artista enigmático que raras vezes permitiu ou facilitou a exploração de seus dados biográficos para a interpretação e análise da obra que construiu. Muitas dúvidas persistem sobre as razões de seu principal tema. A retratação repetitiva de adolescentes era uma obsessão sexual ou um mero jogo, um assunto escolhido para compor um discurso sobre as transformações vividas pelo corpo? Com sua morte, devem vir à cena estudos que analisem a questão mais detalhadamente. O que se sabe é que as meninas-mulheres de Balthus parecem guardar um enigma. Em cenas aparentemente banais que reproduzem mocinhas lendo, dormindo ou devaneando, o ambiente é perturbado pela conotação erótica, como em Menina e Gato, de 1937, ou O Jogo de Cartas, de 1948-1950, na verdade um jogo de sedução, com temores e desafios, entre dois adolescentes. Os corpos ainda não completamente formados e, muitas vezes, a imagem de um gato na espreita delineiam o quadro da infância. Mas o olhar das meninas, ardente, às vezes perverso, indica o despertar violento da tomada de consciência do poder da sexualidade. Esse olhar, essas composições de silêncio e solidão fornecem às obras um aspecto melancólico, quase trágico, carregado de erotismo, mas sem conotação pornográfica. Um crítico norte-americano costuma dizer que o artista queria com tudo isso referir-se à natureza sagrada do erotismo, esse movimento, como já disse um amigo de Balthus, Georges Bataille, cujo fim é alcançar o ser no que tem de mais íntimo. O próprio Balthus ajudou a aumentar a carga de ambigüidade na análise de sua obra. Negou muitas vezes o aspecto erótico, mas dizia que gostava de chocar. Esse dândi aristocraticamente reservado, no final da vida, se tornou mais acessível e concedeu algumas entrevistas que no futuro poderão ajudar na leitura de seu trabalho. ‘‘Eu não compreendo por que as pessoas vêem as pinturas das garotas como Lolitas. Minha pequena modelo é absolutamente intocável para mim’’, disse ao crítico de arte do The New York Times, Michael Kimmelman, em 1996. A um outro entrevistador, entretanto, comentou que preferia trabalhar com modelos meninas porque elas representam uma mescla de sensualidade inocente que uma mulher jamais tem. Jed Perl, crítico de arte do The New Republic, em longo artigo publicado em 1999, comentou que as meninas de Balthus não são vítimas, elas habitam um mundo de sonhos delas próprias. E há quem diga que a fábula das adolescentes não tem nada a ver com uma obsessão sexual, exceto aos olhos de quem contempla. O tema das adolescentes lânguidas deverá desafiar ainda muitos historiadores de arte. Polêmicas desse conteúdo à parte, o certo é que Balthus deixou importante e qualificado legado. O catálogo raisonne de seus trabalhos inclui 2.100 obras, das quais 350 são pinturas. Avesso a filiações, era enfático em dizer ‘‘eu não sou um pintor moderno’’. Contemporâneo de Pablo Picasso, Alberto Giacometti e Juan Miró (a quem retratou com a filha Dolores), ele nunca se sentiu à vontade em pertencer a grupos, correntes de pensamento ou estilo, embora sempre tenha sido classificado como um pintor realista. Diferentemente dos pintores norte-americanos do século passado, para quem a abstração era o fundamental, para os europeus a figuração manteve sua importância ao longo do século 20 (é bom recordar a obra do inglês Lucian Freud). Balthus permaneceu fiel a essa orientação, já apontada no seu primeiro livro de desenhos, intitulado Mitsou: Quarenta Imagens de Balthus, lançado quando tinha 13 anos, com introdução de Rainer Maria Rilke, amigo e admirador de sua mãe, que funcionou para o jovem Balthus como uma espécie de preceptor informal. A convivência com Rilke (e sua influência) também é outro aspecto da biografia do artista a ser estudado. Alguém já disse que Balthus é um artista de quem nada se sabe. Até mesmo o título de conde que passou a anteceder seu nome, depois da morte do pai, em 1949, muitos dizem ser parte da lenda que inventou para si mesmo. De concreto ficou a obra espetacular, pungentemente erótica, de um criador que insistia ser apenas mais um trabalhador. ‘‘Eu não pinto para interpretar ou transmitir mensagens. Eu apenas pinto’’, continuou dizendo até a morte. Graça Ramos, em especial para o Correio.

3 comentários:

Beth Kasper disse...

Adorei esta postagem sobre Balthus.

Beth Kasper disse...

Peço licença para linkar esta postagem num outro texto que estou preparando sobre Balthus no meu blog Papos sobre Arte.
Um abraço

Liliana Rosa disse...

Fique à vontade!
Será uma honra!
Grande abraço.
Liliana