quinta-feira, 13 de março de 2008

Dois martinis e um bilhete para o teatro, por favor!


Valdemar Santos – «Dois martinis e um bilhete para o teatro, por favor!» entrevista por Liliana Rosa

Actor independente por opção pessoal, Valdemar Santos conta com uma vasta experiência como actor e uma sensibilidade de encenação únicas. Iniciou o seu percurso teatral na Companhia de Teatro Amador do BPA e logo embarcou na jornada pelo teatro profissional. CAIR-TE, Teatro Art`Imagem e TIPAR do Porto, Teatro do Morcego – Laboratório Oficina de Coimbra e HIDRA – Associação Cultural de Aveiro, foram algumas companhias onde deixou rasto. Apaixonado pelas viagens – as que realiza solitário pelo mundo e pelo teatro – abre-nos o seu diário de bordo onde inscreve memórias de tempos de manejo de vida e de sobrevivência pela arte entre palavras pungentes e dois martinis.

LR: Onde começa o teu percurso como profissional de Teatro? Como vens para Portugal e quais as lembranças que te ficaram de África?
VS: «Nasci em Benguela em 1963, aos 11 anos vim para Portugal, depois do 25 de Abril de 1974. As memórias que recordo são os muitos cheiros, muita fruta, muito ar, muito espaço. Lembro-me também da «porrada» que levava dos meus pais por ir às senzalas comer com os negros e voltar para casa sem apetite!
O primeiro contacto com teatro foi aos 18 anos no grupo de teatro amador do BPA, quando reconheci que me dizia alguma coisa, resolvi experimentar e foi até hoje. O primeiro encenador com quem trabalhei foi o António Fonseca em «O vagabundo das mãos de oiro» de Romeu Correia e «Rei com crista de galo», sucederam-se António Capelo em «O Escurial» e «A mandrágora» de Maquiavel, e «Animal Killer» a partir de textos de Fassbinder - Co-produção BPA/Teatro Art`Imagem.»

LR: Não frequentaste escolas de teatro, pelo que desenvolveste a tua formação através de experiências que tu próprio determinaste. Como «actor autodidacta» ou «artesão de teatro» como caracterizas a actividade pedagógica nesta área?
VS: «Aprendi muito a ver teatro, sobretudo no Carlos Alberto numa altura em que as companhias como O Teatro Aberto, A Comuna, A Cornucópia e outras que vinham ao Porto frequentemente. É pena que não seja mais habitual a vinda de companhias de outros pontos do país ao Porto. Uma grande referência que tive foi Mário Viegas, a cujos espectáculos assisti algumas vezes.
Concordo com Dario Fo quando diz «As escolas são precisas mas mais do que as escolas, aprendemos muito a ver os grandes mestres, os grandes actores». Quanto a formação teatral, fiz alguns Workshops com Joaquim Benite. Se houvesse escolas no Porto quando comecei eu teria frequentado alguma delas e nunca teria sido empregado bancário.
As escolas são muito importantes porque favorecem um estudo mais organizado e uma concentração de materiais.»

LR: Qual é a tua opinião quanto aos profissionais que saem das escolas?
VS: «A formação e a instituição não determinam as capacidades do criador, depende de cada um, há pessoas que gostam do que fazem, sabem e são boas e outras a dar conta do recado. O importante é a preocupação com o processo criativo.
Dos profissionais que conheço que saíram das escolas, alguns fazem belíssimos trabalhos. É pena que não haja condições, que a própria cidade e o governo não garanta condições para que desenvolvam condignamente o seu trabalho. Muitas vezes têm de encontrar outros meios de subsistência noutras áreas. O estado e as próprias organizações culturais ignoraram as condições culturais que o país tem. Em Espanha e até no Brasil há uma grande protecção aos artistas. Incomoda-me que hajam profissionais a querer trabalhar e não haja como. Há uma concentração de poder: espaços públicos que pertencem a um número restrito de pessoas limitados por questões burocráticas e de apadrinhamento...
Claro que há sempre uma resistência e o teatro há-de acontecer sempre nem que seja em garagens, em bares - O que não se faz com 50 projectores faz-se com 5 ou à luz das velas ( tal como aconteceu num dos espectáculos do Teatro do Morcego «Nostrum Lenz» em 2001).
Para mim o teatro é contar histórias e as pessoas gostam de ouvir histórias, o que acontece é que a maior parte não vão ao teatro, ficam em casa a ver telenovelas, histórias mastigadas que se arrastam.»

LR: Como caracterizas o teatro que se faz no Porto?
VS: «Faz-se bom teatro no Porto, é pena que poucas pessoas assistam aos espectáculos. No Porto 2001 por exemplo, só houve dois espectáculos que abrangeram o grande público: «A Ponte de Sonhos» pela ACE – Academia Contemporânea do Espectáculo e «O Autocarro do Amor». Estes espectáculos deram a possibilidade às pessoas de ver teatro por um preço muito acessível. O preço dos bilhetes não está caro se compararmos com o preço de um concerto musical. É certo que há mais sensibilidade para a música, como é natural pelos factores de divulgação e meios protectores. Nem todas as companhias têm dinheiro para apostar na divulgação.
O Teatro Art’Imagem é uma das companhias mais antigas do Porto e tem mantido uma intervenção importante na cidade – realiza, por exemplo dois festivais internacionais anuais, o Fazer a Festa e o Festival Cómico da Maia que movem dezenas de companhias. Não compreendo como é que não tem mais apoios.
Com igual valor, a cidade do Porto tem companhias com trabalho de mérito como: o Teatro Bruto; As Boas Raparigas; A Assédio – especializada em novos dramaturgos; a Seiva Trupe; o Pé-de-vento – única companhia de teatro infantil no Porto. Deveria haver no Porto um espaço aberto para o Teatro Infantil.
O estado tem de assumir responsabilidades perante a arte em geral. Não há protecção em relação às artes enquanto que dinheiro para o futebol há sempre. Existem algumas posições bacocas, corrosivas e más da parte da política governamental, seja esta de esquerda ou direita. Se houvesse mais acesso à cultura talvez as pessoas se tornassem mais civilizadas e sensibilizadas. Haveria mais civismo, mais respeito, mais compreensão e não tanta ostentação de pequenos grupos. A HIDRA, por exemplo, funcionou como Associação Cultural em Aveiro num desenvolvimento cultural da cidade importantíssimo pelo fomento de actividades a nível de teatro, música, projecção de vídeo, mas que sem apoios, fechou portas.
O estado corta orçamentos na Educação e na Cultura que são as bases fundamentais de um povo são. Estamos dominados pelo mau gosto e pela pirosice. Há dinheiro para arraiais «pimba» e outros produtos de qualidade questionável. Porque não misturar as coisas? Dividir o mal pelas aldeias: numa festa de arraial apresentar o tal artista/grupo e um espectáculo de teatro. Sei que é utópico mas seria um meio de dar a conhecer ás pessoas outras formas de estar, outro tipo de manifestação, outros sons, outra música...
A política de protecção cultural deveria partir dos centros das cidades e criar linhas de descentralização de forma a canalizar espectáculos para os meios pequenos...
Não compreendo o facto das Câmaras Municipais, ao comprarem um espectáculo, só pagarem passado meio ano ou um ano. Será que os actores comem de ano a ano quando recebem? Quando são grupos musicais pagam na altura. Qual é a diferença? Não entendo porque é que quem nos contrata – o Senhor Vereador da Cultura – tem o seu ordenado no fim do mês e permite que isto aconteça. Há muita má fé, há um abuso de confiança mas as companhias precisam de viver e vão aceitando.»

LR: No projecto Vozes exploraste dramaturgicamente diversos autores. Quais é que deixaram referências no teu trabalho?
VS: «Fui convidado a fazer leituras de poesia e aceitei. Acrescentei a este projecto uma vertente de «leitura encenada» ou «esboço teatral». O Vozes aconteceu em 2002/2003 de 15 em 15 dias em que se dedicava cada sessão a um autor/compositor diferente. Comecei pelo poeta Ary dos Santos e pelo músico Carlos Paredes, depois Al Berto, Sofia de Melo Breyner, José Gomes Ferreira até Jim Morrison e Ian Curtis. O público começou a aderir e convidei outros actores. Foram apresentados vinte autores num ano e meio até que o projecto teve de acabar por falta de apoios mesmo sendo do conhecimento da Câmara Municipal da Maia.
Marcaram-me alguns autores aliados a este projecto como: José Gomes Ferreira; Fernando Pessoa que apresentei segundo o heterónimo Álvaro de Campos; Mia Couto – um belíssimo contador de histórias e inventor de palavras... são muitos autores e cada vez que vou mergulhando no poço mais o poço se torna mais profundo e mais ansioso fico em conhecê-los a todos – é isso que nos torna cada vez mais pequenos.»

LR: Abordaste a obra de Artaud em «Os sentimentos atrasam». O que é que ficou desta personagem?
VS: «Artaud era um ser muito inquieto e de uma poesia perturbante. Mais que um homem do teatro foi um grande poeta, um grande pensador, um grande filósofo e um inovador. As suas experiências teatrais não deram certo mas a sua obra abriu caminho para novas linguagens. Rebentou com um teatro acomodado mostrando uma nova abordagem às artes, não só ao teatro mas à música e à arte vocal. Era uma pessoa perturbadora, um grito de revolta. O que me ficou dele foi a imagem de um poeta que se preocupa com a vida e com a morte que o fascinava e perseguia constantemente.
Tal como Artaud, Baudelaire, outro autor que eu gostaria de levar a cena, é corrosivo e alerta consciências.

LR: Como é que surge a ideia de levar a cena a vida de Frida Kahlo?
VS: «A Manuela Moreira convidou-me para este projecto depoide ter acompanhado a minha actividade no Vozes. O texto «Frida Kahlo» de José Jorge Letria é muito poético. Foca sobretudo a paixão de Frida pelo Diego Rivera fazendo uma viagem por toda a sua vida. Frida teve um acidente quando tinha 15 anos que a motivou a descobrir a pintura pela imobilidade que este lhe causou. Frida era uma pessoa com uma apetência e paixão de vida impressionantes e quase febris. As próprias cores garridas, do sangue e da terra, que usa nas suas telas evocam um apego à terra e à vida. É uma defensora da vida quando seria a melhor pessoa para lhe por fim. O processo de encenação foi fantástico, houve uma grande entrega da parte das actrizes. Multipliquei a personagem por quatro actrizes e quadrupliquei-as através da opção dos espelhos presente na peça. Tinha de incluir o espelho na peça, porque foi muito importante na vida de Frida – foi assim que ela descobriu a pintura. A impossibilidade de sair da cama, onde permaneceu a maior parte dos seus dias desde o acidente, levou-a a pintar o seu retrato – a única paisagem acessível aos seus olhos através de um espelho. Daí a justificação dos auto-retratos contínuos na sua obra e a minha opção de colocar em cena uma sucessão de quadros.
Esta peça apresenta-nos uma conversa de Frida com o Diego Rivera. Expõe o que se passou na sua vida enquanto Rivera esteve desatento: a situação política mexicana, a revolução dos camponeses, a paixão pela sua cultura, pelo povo, pela vida e pelos ideais comunistas.»

LR: Qual a função do actor e do encenador? O que é que consideras importante em termos de «comunicação teatral» – a forma como se estabelece a comunicação entre actor/encenador e receptor/público?
VS: «Teatro é comunicação acima de tudo. O que acontece é que em determinados espectáculos não se consegue encontrar a ponte de comunicação, por vezes pela complexidade do tema, ou pelo experimentalismo da técnica teatral. Tem de haver algo que ligue o público ao que está a acontecer no palco. Somos acima de tudo contadores de histórias. Cada criador tem a sua maneira de contar uma história que será dada pela sua cultura, pela sua vivência, pelo seu trajecto. Daí que haja diferentes abordagens de uma mesma historia.
Não havendo comunicação não há teatro! O encenador é quem recria a história de acordo com a sua visão sobre ela. O actor é um instrumento de trabalho que o encenador utiliza para esse mesmo fim – É um dador, doa a sua voz, o seu corpo, as suas expressões, o seu sentimento e todo o universo de emoções físicas e espirituais para o fim de uma história sob a mão do encenador. O actor não é uma marioneta – Durante o processo dá-se entre o actor e o encenador uma relação de cumplicidade, de respeito e conhecimento exacto do espaço de criatividade de cada um para que ambos falem a mesma linguagem. Este processo implica muito trabalho, muita humildade e muita sinceridade.»

(Aqui fica mais uma das minhas intensas entrevistas realizadas em tempos idos!! Agradeço ao meu querido amigo, companheiro de luta e grande actor, Valdemar Santos pelo exemplo que ele próprio representa no teatro português. Valdemar está neste momento em S.Paulo com o espectáculo "Babine, o Parvo")

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