quinta-feira, 13 de março de 2008

CRÓNICAS DO CORPO CÉNICO




«O COMUM DO CORPO» - Exercício sobre teatro e comunicação pelo corpo.

“O mundo cénico representa um mundo onde o nosso quotidiano, já não mais serve para exprimi-lo e a nossa linguagem quotidiana distorce a realidade cénica”. Eugenio Barba

O «corpo comum» é o corpo de cada indivíduo quando se idealiza que cada corpo individualmente vem representar o espaço físico que o indivíduo desempenha na sociedade e no meio onde se organiza. O corpo representa a identidade física de uma outra identidade mais complexa que alguns chamam de «alma». O corpo artístico é tido como uma imagem filtrada através de um coador que separa a ficção da realidade.
Ao pensar o teatro com uma natureza distinta da que supomos para o quotidiano, das nossas vidas e raciocinando, por indução, através de observações feitas, apreende-se que o corpo do actor em movimento, muito mais que uma simples marcação, é uma dança, que varia entre a mímese e a abstracção. Cria-se o caminho de ligação do corpo do actor com o pensamento, o corpo exprime o pensamento.
É impossível falar em fisicalidade sem falar no factor «energia», pois movimento está obrigatoriamente ligado à noção de ritmo e intencionalidade.
A energia é o ímpeto, aquilo que impulsiona o interprete para o trabalho cénico de preparação exaustiva, aquilo que o acompanha no momento de execução do espectáculo, e está presente a cada momento da sua actividade. Energia é um processo que o actor estabelece consigo mesmo, que o rege desde o seu interior, é assim como um subconsciente. Contudo é ainda dominável, manipulável, é também pensamento.
O movimento ou a imobilidade, a transformação e a cadência de mobilidade é gerida no sentido de transmissão de um tipo de presença física, a transformar em presença cénica, e portanto expressão. O corpo funciona no sentido de fazer visível o invisível - o ritmo do pensamento.
A imagem do «corpo cénico» é plástica, maleável. O corpo cénico é modelado, esculpido pelos pensamentos, e neles se transforma.
Em palco, os lugares mesmo os mais abstractos são lugares que possuem três dimensões, por que se tratam de lugares necessariamente humanos ou antromorfizados pela presença fisicalizada do espírito humano. Os actores em palco, no seu conjunto, movem-se obedecendo a um certo padrão. O movimento em cena parece conter o desenho de uma trilha. Percebemos a existência de um caminho invisível como uma música no espaço tridimensional, nota-se, muitas vezes que esta música é harmónica, outras vezes sente-se a sua rudeza.
“O teatro está nas nossas vidas” afirma Robert Pignarre na sua história do teatro, enfatizando que nenhum ser vivo pode estar fora desta modalidade de comportamento, pois trata-se do comportamento fundamental garantido da sobrevivência das espécies, seja através do mimetismo biológico, seja através das complexas relações sociais inerentes a todas as sociedades humanas porque o ser vivido tem necessidade de comunicar.
UM TEATRO A COMUNICAR...
O vocábulo teatro, do grego, theátron , “lugar aonde se vai para ver” é impreciso na sua solidão como palavra para expressar a riqueza acumulada em torno deste fazer artístico durante estes últimos milénios.
O fenómeno teatral está apoiado na tríade essencial comunicativa : texto – actor – público, esta tríade implica-se a si mesma através da comunicação porque para comunicar temos a voz e o corpo como intermediários que se implicam entre si e como receptor o público que «escreve» a fábula teatral. O texto, uma potencial semente geradora do espectáculo, num sentido amplo de fábula. O caminho desta fábula para o espectáculo, dá-se através de uma «corporificação» com presença física do actor em cena onde se implicam todas as condições físicas de que dispõe, ou seja todos instrumentos que o seu corpo possui. Muitas vezes, esta «corporização» é traduzida como uma marcação das posições do actor, discurso, posturas e gestos. Daí se denominar marcação como sendo o acto concreto de construção do espectáculo expressando a vontade e as emoções das personagens.
O teatro é executado por alguém que tem uma fisicalidade concreta, o actor executa «acções físicas» para dar realidade exacta à personagem. O público precisa de sentir a presença delas . É isto que faz do teatro uma arte muito especial. Um modo de interacção simbólica que necessita da presença física de todas as partes envolvidas. Um sistema interactivo que torna possível a comunicação de uma realidade virtual aos espectadores, visto que não é a realidade mesma dos actores, mas a de um universo imaginário. Na perspectiva de uma troca esta interacção tem como moeda um conjunto de símbolos indiciais do universo imaginário cujo suporte é o corpo do actor num contexto espacial determinado.
(Os Sertões foi uma experiência marcante! A convite do meu amigo José Celso fiz uma leitura do El Niño durante os memoráveis sertões.)

CORPO DECLAMADO OU CORPO CASTRADO...
A imbricada relação teatral entre dança e canto está associada nas suas origens a vários rituais primitivos a partir de uma manifestação de êxtase difundida no corpo. Evoca-se a presença do homem ao redor de uma fogueira a executar as primeiras danças dramáticas. O teatro como fenómeno complexo está associado a rituais, entendendo-se a rituais como um conjunto de acções físicas, que tem por objectivo a celebração de algum traço do tecido social, tal como a celebração dos mitos, e dos momentos de passagem do homem de um estádio para outro dentro da sociedade na qual está inserido.
A manifestação teatral resulta da celebração de rituais religiosos, seja na Grécia no culto ao deus Dioniso, seja em Bali, seja na Índia ou no Japão.O teatro surge do ritual religioso mas dele se separa, sem no entanto deixar de ser um ritual. Com todas as fases de instalação «ritualista», seja os ritos de entrada, os ritos de celebração e os ritos de saída. Da observação dos grupos sociais em situação de representação teatral, é possível demarcar com precisão estas regiões do acontecimento «ritualistico» em todas as manifestações. A separação do teatro da religião é uma fronteira difícil de ser explorada. Até hoje os factos do teatro ocidental estão marcados pela presença mítica de Dioniso quando a religiosidade se afasta do corpo. A religião esconde o corpo e castra a manifestação natural. O conceito de texto dramático vem fazer a divisão de partes. A origem do teatro é o momento de uma intencionalidade diferente daquela que organizava o culto religioso original. Há a cisão do pensamento teórico em duas correntes fundamentais: a primeira que coloca a origem desta intencionalidade na presença da palavra, da obra escrita por um autor dramático, como sendo fundadora destas novas relações entre o real e o imaginário; a segunda como sendo o movimento, a dança dramática, ou até mesmo o movimento puro deslocado da intenção religiosa como fundadora de algo novo.

Nenhum comentário: